No teatro

Além do palco, atriz foi dona de companhia de teatro e empresária de sucesso

Tônia foi um sucesso em todos os terrenos cênicos em que pisou. O teatro, em particular, ao lado do seu eterno parceiro Paulo Autran e do então marido Cecil Thiré, foi o mais fértil. Nele, ela se esparramou como atriz e como empresária. Acompanhe esse percurso no texto escrito por Heloísa Pontes(*) especialmente para o hotsite desta Ocupação.

Atriz de beleza incomum, Tônia Carrero destacou-se nos palcos e fora deles, no papel também de dona de companhia. O tino empresarial incidia na escolha do repertório e na desenvoltura com que transitava nos círculos da elite carioca, na imprensa e no colunismo social. Nessa empreitada, Tônia não esteve sozinha. Contou com o apoio entusiasmado do público e com a colaboração empenhada de alguns parceiros ao longo de sua exitosa trajetória profissional.

O primeiro deles foi o marido, Carlos Thiré, publicitário, produtor de teatro e pai de seu único filho, o ator Cecil Thiré. Ele foi responsável pela montagem da companhia que viabilizou a inserção de Tônia na cena carioca no final dos anos 1940, ao lado de Paulo Autran. Entusiasmada com a performance de Paulo Autran como intérprete amador e vendo nele o ator ideal para contracenar, Tônia encarregou o sócio do marido, Fernando de Barros, de intermediar a negociação para que ele integrasse a companhia. De início, Paulo Autran recusou o convite, alegando, segundo a atriz, “que ganhava 1 conto de réis, como advogado, e nós perguntamos quanto ele queria ganhar para trabalhar conosco. O bandido, para fechar a questão achando que íamos desistir, deu o xeque-mate: ‘Quero 11 contos de réis para abandonar tudo e me dedicar ao teatro’. [...] Era uma fábula de dinheiro. Mas nós topamos a parada. Foi um instante de loucura nossa. Meu, do Carlos Thiré e do Fernando de Barros. [...] Arriscamos tudo que tínhamos em cima de um talento enorme e o Paulo capitulou. Perdeu-se talvez um bom advogado, mas ganhamos o maior ator brasileiro de todos tempos”.1

A versão de Paulo Autran é ligeiramente diferente e faz parte do anedotário sobre a conversão do advogado – formado em 1945 pela prestigiosa Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – em ator profissional aos 27 anos de idade. Alimentado pelos fãs e pelas entrevistas publicadas na imprensa, tal anedotário foi disseminado pelo próprio ator, que não se cansava de contar o incidente no registro das comédias de boulevard, nas quais, para usar palavras dele, “as noções de ‘leveza’, de ‘economia de expressão’, de ‘ritmo’, de ‘equilíbrio’ são indispensáveis”.2 Era com esse espírito de comédia fina – na qual menos é sempre melhor que o excessivo mais da chanchada – que o ator, ao relembrar o convite de Tônia e a proposta feita por Fernando de Barros em 1949, afirmava que a atriz “só foi saber que eu ganhava mais que ela muito tempo depois”.3

Integrados à companhia, um ano depois, Tônia e Paulo foram convidados pelo empresário Franco Zampari para participar dos dois empreendimentos que ele idealizara em São Paulo: o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e a Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Com a transferência deles para a capital paulista, a companhia carioca se dissolveu. Fernando de Barros foi contratado como diretor e produtor da Vera Cruz e Tônia como sua atriz principal. O casamento dela com Carlos Thiré, se ainda não havia acabado, estava por um fio. Em 1951, enquanto Paulo Autran estreava no TBC com a peça Ralé, de Maksim Górki, contracenando com Maria Della Costa, Tônia filmava Tico-tico no fubá em meio ao início do seu romance com o diretor italiano Adolfo Celi, envolvido com o TBC e também com a atriz Cacilda Becker. Tônia sabia disso; Cacilda, não. O triângulo amoroso teria consequências importantes na vida dos três e nos rumos que tomaram profissionalmente. Cacilda foi preterida por Tônia e permaneceu no TBC, antes de fundar a própria companhia. Tônia voltou ao Rio de Janeiro e levou consigo Adolfo Celi e Paulo Autran. Os três saíram juntos do TBC em 1955, e no ano seguinte lançaram a Companhia Tônia-Celi-Autran (CTCA).

Paulo Autran foi o grande parceiro de trabalho de Tônia Carrero. Adolfo Celi, por sua vez, foi o mentor e o diretor que a formou como atriz. “Mestre, marido e mentor”, ele colaborou com intensidade para projetá-la nacionalmente como atriz de teatro depois da repercussão que tivera como estrela de cinema na Vera Cruz. Em suas palavras, “o que eu aprendi com ele refletiu em tudo o que eu fiz depois [...] a relação com os companheiros do palco, a disciplina em cena e nos bastidores, a observância dos contratos, o respeito pelos autores... Tudo isso foi um longo aprendizado que se iniciou no TBC e continuou em nossa companhia. Tirando meu filho, tudo ficou secundário em favor do teatro”.4

Na década de 1950, havia espaço e demanda na então capital federal para a instalação de uma companhia como a deles, afinada com as linhas de força do TBC, sobretudo porque seus idealizadores eram o diretor italiano que consolidou a companhia paulista, o ator que melhor soube traduzir o espírito de renovação, de autoridade cultural e de apuro técnico do empreendimento, e a atriz de beleza incomum e apelo popular. Carioca de nascimento e com talento para o métier, Tônia já provara que, com trabalho aplicado, bom repertório e boa direção, poderia se ombrear com as grandes intérpretes de sua geração. Acertadíssima, a decisão de se transferirem para o Rio tinha como ingrediente adicional a concorrência acirrada em São Paulo. Além do Teatro Maria Della Costa e da proeminência que o Teatro de Arena estava em vias de ganhar, é preciso lembrar que, em 1956, os sinais da crise que se abateria sobre o TBC eram visíveis e só seriam parcialmente resolvidos com a entrada dos diretores brasileiros – Antunes Filho e Flávio Rangel, especialmente – e com a montagem de um repertório mais envolvido com as questões sociais e políticas do período.

A CTCA estreou com Otelo, de Shakespeare, na presença do recém-empossado presidente Juscelino Kubitschek e da primeira-dama, Sarah, ganhando destaque na imprensa. Paulo Autran fez o personagem principal e Tônia interpretou Desdêmona. Na companhia, Autran assegurou a posição de primeiro ator, ao lado do diretor que mais admirava e da atriz com quem mais se identificava e que mais lhe oferecia oportunidade para brilhar em cena. Entre 1956 e 1962, eles montaram 25 peças: 20 de autores estrangeiros e 5 de dramaturgos brasileiros. Tônia participou de 17, nem sempre como protagonista, por decisão própria. Na escolha do repertório, pesavam o seu tino empresarial, a visão de conjunto do marido e diretor Adolfo Celi, a qualidade e o senso de oportunidade para alternar peças de maior ousadia e impacto cultural com outras de maior apelo comercial. Assim, nos palcos cariocas, a companhia seguia a política de repertório adotada em São Paulo pelo TBC. Em 1958, com a transferência para o Teatro Mesbla, envolveu-se cada vez mais com “a chamada ‘society’ e a frívola crônica social, tornando menor a sua imagem cultural”, segundo Maria Inez Barros de Almeida, autora de um estudo monográfico sobre a companhia.5

Os poucos textos de dramaturgos brasileiros encenados pela CTCA passavam ao largo das questões políticas que mobilizavam o polo mais à esquerda e de maior legitimidade cultural do campo teatral – e por uma escolha deliberada de Adolfo Celi, que sempre dissociou a estética da política. Segundo Paulo Autran, “ele tinha pavor de política. Sempre teve. Lembro que, numa ocasião, fiz uma reunião com ele e Tônia e disse: ‘Celi, a gente tem que fazer uma peça política. O momento exige que se faça. Falando apenas em termos teatrais, você veja o sucesso do Arena, do Oficina, começando em São Paulo... Temos que fazer peças com ideias políticas!’. Ele respondeu: ‘Paulo, não me meto em política em hipótese nenhuma. Sofri muito com Mussolini, na Itália, e qualquer coisa que se refira à política, tenho pavor! Eu não quero’. Acho que errei totalmente por não ter insistido mais nessa atitude”.6

Essa política da recusa à política em um dos períodos de maior politização da cultura brasileira certamente teria consequências mais duras para a imagem da companhia caso ela não tivesse se dissolvido em 1962, com o fim da parceria amorosa de Tônia com Celi. Separado da atriz e sem companhia de teatro, o diretor retornou à Itália no mesmo ano, depois de 14 anos vivendo no país. Casado com uma mulher 20 anos mais nova que Tônia, troca a carreira de diretor pela de ator de cinema em filmes de importância cultural reduzida, embora de impacto comercial garantido, como uma série do James Bond na qual ele fazia um dos vilões. A partir de então, a carreira de Celi, se pensada à luz da autoridade cultural de que ele havia desfrutado no Brasil, sofreu um rebaixamento. Paulo Autran e Tônia Carrero, ao contrário, seguiram em ascensão.

Atriz de feitio realista, talhada como poucas pela beleza e pelo timing para a comédia requintada, Tônia aprimorou-se entre o início de sua primeira companhia, em 1949, e o final da segunda, em 1962. Especialmente quando subiu no palco para interpretar, em 1967, a prostituta de Navalha na carne, de Plínio Marcos. Com esse papel, ela se despiu da personagem que encarnava há tanto tempo: a mulher elegante e sofisticada que, como atriz, era condenada aos infortúnios da beleza incomum. Pois, como é sabido, se na vida cotidiana a beleza é um trunfo e um chamariz, no teatro, ao contrário, pode ser um obstáculo ao exercício pleno do mecanismo de burla propiciado e exigido pela arte da representação. Quando colada demais à imagem de uma atriz, a beleza se converte em um empecilho para que seu corpo – suporte privilegiado para a reconversão de experiências alheias – consiga burlar os constrangimentos sociais de classe, gênero ou idade e, assim, infundir à personagem uma pletora de significados novos e inesperados. Felizmente, não foi isso que aconteceu com Tônia na peça de Plínio Marcos – um divisor de águas na dramaturgia nacional e na sua carreira. No papel de Neusa Sueli, a atriz ofuscou a beleza. Despojada e aguerrida, ela expôs no palco um lado até então desconhecido da prostituição, numa linguagem nada usual para época, e ganhou o reconhecimento unânime da crítica e do público.

(*) Heloisa Pontes é professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e bolsista 1B de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Mestra em antropologia e doutora em sociologia, trabalha com temas relacionados a produção cultural e gênero, veiculados em seus artigos e capítulos. Dois de seus livros (Destinos mistos e Intérpretes da metrópole) receberam o Prêmio Anpocs de Melhor Obra Científica, respectivamente em 2000 e 2011, e o segundo foi traduzido para o espanhol em 2016. Coorganizou, entre outros, Cultura e sociedade Brasil e Argentina e Casa-mundo.

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De 13 de agosto a 6 de novembro de 2022
Terças-feiras a sábado das 11h às 20h
Domingos e feriados das 11h às 19h

Pesquisa, concepção, curadoria e realização: Itaú Cultural
Cocuradoria: Luisa Thiré
Projeto expográfico: Kleber Montanheiro

Itaú Cultural
Avenida Paulista, 149 – Próximo à estação de metrô Brigadeiro.
Pisos 1º, 1ºS e 2ºS

Ingressos: gratuitos

Informações pelo telefone: (11) 2168-1777.
Atualmente, esse número funciona de segunda-feira a domingo, das 10h às 18h.

E-mail: atendimento@itaucultural.org.br

Programação Cênica

Navalha na Carne – Uma homenagem a Tônia Carrero
Com Luisa Thiré, Alex Nader e Ranieri Gonzalez
Dia 23 (terça-feira), às 20h
Sala Itaú Cultural
Capacidade: 224
Duração: 1h
Classificação Indicativa: 16 anos (violência psicológica, violência física, discriminação, vocabulário chulo)
Distribuição de ingressos: INTI. Consulte o site a partir de 17 de agosto, quando serão abertas as reservas

O Monstro de Olhos Azuis – Memórias de Tônia Carrero
Com Luisa, Carlos Arthur, João e Miguel Thiré
De 25 a 27 (quinta-feira a sábado), às 20h
Dia 28 (domingo), às 19h
Sala Itaú Cultural
Capacidade: 224
Duração: 1h
Classificação Indicativa: 12 anos (vocabulário culto)
Distribuição de ingressos: INTI. Consulte o site a partir de 17 de agosto, quando serão abertas as reservas

Protocolos

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